David Kimbrough não é um homem
muito conhecido. Afora alguns poucos círculos de fãs do blues de raiz, são
poucas as pessoas que sabem a história por detrás desse nome. Kimbrough nasceu
em 1930, ao lado de um dos epicentros do blues, o Delta do Mississippi. Passou
grande parte de sua vida em beiras de estrada e ruas esfumaçadas e paranóicas.
Noites e mais noites de bar em bar, tocando por comida, dinheiro ou pura
diversão. Ele esteve lá e voltou para contar o que acontece do outro lado.
Estava lá quando Charlie Patton, B.B. King, Son House, Leadbelly e Big Joe
Williams, entre outros, competiam entre si por um curto espaço na vasta noite
dos bares, que afloravam quando a luz do sol se esvaía no infindável
Mississippi. Os olhos e ouvidos de David Kimbrough viam e escutavam aqueles
acordes lamurientos e lascivos, aquelas vozes possuídas e elevadas, enquanto
sua mente se distanciava até o horizonte do futuro e olhava para trás, para
aquilo que ainda faria em sua vida. Suas pupilas dilatavam enquanto outro
cantor ensandecido soltava entre a platéia dançante sofrimentos elétricos,
pesares sonoros. Esses seres que nos olham lá de cima e despejam sobre nós,
intrincados como flocos de neve, acordes de seus instrumentos, ou proferem
palavras que caem de suas bocas e se esparramam pelo chão enquanto nos inundam,
como Charlie Patton ou Leadbelly, eram as companhias noctívagas de Kimbrough;
parceiros de copo, baseados e putas.
O
peculiar sobre David Kimbrough é que, afora singles e alguns bootlegs
espalhados por aí, o primeiro álbum que ele gravou foi em 1992, quando ele já
tinha mais que sessenta anos. All Night Long, o dito, não é
surpreendente ou avassalador. Mas seu som é profundo e cada nota tocada balança
em nossas cabeças como as ondas estourando contra os navios negreiros. Sua
guitarra uiva para nós. O álbum não é espetacular, porque tampouco é a historia
do blues espetacular; pelo contrário, ela é comum, ela é ordinária, da gente,
dos negros, pobres, trabalhadores, gente maltrapilha que vive entre trapos e
farrapos. O blues, e também o álbum estão apenas de passagem; não devem ser
enquadrados em épocas, rotulados em estruturas musicais, nem sequer podem ser
propriamente descritos por frases amontoadas em parágrafos. Quando escutamos as
palavras quase inteligíveis que Kimbrough emite rasgar o som monótono e
pulsante que sua guitarra produz, uma estranha sensação se apodera do corpo.
Aquela voz arcaica, carregada de voodoo, de segregação racial, de enforcamentos
e linchamentos, de sensualidades transgressoras e sabedoria das ruas, nos
algema os ouvidos e nos força a vê-la ser chicoteada. Sua voz antiga e quiçá
áurea revela um homem que verte experiência por cada poro de seu corpo. Em 92,
quando entrou na pequena igreja onde o álbum foi gravado, Kimbrough era já
vivido, distinto, batido, calejado e tão anabolizado que seu corpo doentio era
impenetrável, tal qual um Burroughs. Aquele tipo de pessoa que possivelmente
nem um soco dado com toda força existente em um corpo seria capaz de alterar
algo em sua fisionomia áspera e sisuda. Kimbrough não entrou naquela igreja
apenas como um músico prestes a fazer seu trabalho, junto com ele, em sua
sombra, entrava ali naquela igreja a poeira cósmica do blues.
Seu disco não
é surpreendente, sequer notório, é apenas uma hipnotizante lamentação de alguém
que já nasceu velho demais pra esse mundo. Alguém que conhece as avenidas,
estradas e highways talvez melhor do que todos nós e que viveu para contar como
foi que o mundo acabou. All Night Long é um disco envolvente e carregado
de movimento. Seja pelo baixo cardíaco de sua guitarra ou pela bateria que o
próprio filho de Kimbrough toca. O som nos leva por um longo e estreito caminho
para além dos confins da memória de Kimbrough, cruzando os rios e mangues do
Mississippi, até os caóticos centros urbanos atuais. Através de suas harmonias
arrastadas, seus fraseados que mais parecem entoações centenárias de escravos,
e seus riffs sujos e pesados Kimbrough reconta a história do blues.
O fato de o
álbum soar como se tivesse sido feito em alguma outra época é exatamente sua
magia. Ele é cru demais para os noventa. É sombrio demais para aquela década
repleta de extravagâncias sonoras. Não oferece, em nenhuma faixa, a impecável
produção de sucesso garantido, porém zero ousado que David Foster deu para o
hit de Whitney Houston, I Will Always Love You, nem as harmonias joviais
e agradáveis dos Boyz II Men. Já comparado ao hit Jump do Kriss Kross, as
músicas de All Night Long são tão caretas quanto um corretor de imóveis
em plena segunda-feira em horário de pico. Isso se formos falar sobre as
músicas de R&B de 1992, por que se formos considerar sons da esfera do
rock, algo saindo de Angel Dust(1992), do Faith No More, ou Dirty(1992),
do Sonic Youth, All Night Long é como um gole de refrigerante perto de
um gole de absinto em chamas. O álbum não oferece nada senão uma agradável
volta por entre alternativas sem soluções. Ele soa como um reconfortante e
misterioso consolo para uma dor que ainda não sentimos. Nos impele a seguir em
frente, a pegarmos uma carona com ele. Mostra que alguém lá fora conseguiu
exprimir em notas musicais muitas de nossas frustrações, angústias, medos e
tristezas. Como o blues, o álbum fica suspenso no ar, feito uma idéia fixa. Ele
pede algum tipo de reação. Nós temos que erguer as mãos para toca-lo, cabe a
nós escuta-lo e deixar o som nos levar por todas as estradas que ele quiser
trilhar.
Quem se deixar
ir, será conduzido por Kimbrough por entre os fragmentos de sua vida, enquanto
ele revela um som total de seus antecessores. Cada nota que eles tocaram, cada
solo que eles fizeram, o grito angustiante e o choro desesperado, igualmente a
fúria libidinosa que seus antecessores nos deixaram estão impregnados nas
músicas de All Night Long. O álbum atravessa a historia, engolindo e
modificando aquilo que ele [re]encontra pelo caminho. Assim como a historia,
ele é um álbum aberto, capaz ainda de gerar novas conexões, re-escrever-se
quantas vezes for possível. Ele é atemporal. Flutua sobre nós em seu próprio
momento, feito uma memória persistente, uma música que costumávamos ouvir
quando nós éramos inocentes e despreocupadas crianças. A música soa como um
pulso elétrico pelos imbricados músculos e minúsculos filamentos do corpo. É
uma conexão direta com a história em formação do blues, um gole de álcool, um
ascender de cigarro, uma ação no presente.
A espetacular
Meet Me In the City soa como um uma viagem no banco de trás de um carro
conduzido por um velho e extremamente sábio motorista. A antiga e reconfortante
paisagem que desliza pelo enquadramento que Kimbrough traça com sua guitarra
nos leva a um passeio através de décadas. Algo como ter Blind Boy Fueller
solando com John Lee Hooker na base, ou um híbrido entre B.B. King e Big Bill
Broonzy. A música se movimenta em direção ao passado, estando cada vez mais
perto do presente, do nosso presente. Ela se desdobra diante de nós, feito um
tapete vivo, e termina onde o futuro começa. É um convite ao eterno encontro de
esquinas, da Celebração com a Saudade. A voz de Kimbrough ressoa como o canto
sofrido e despedaçado dos escravos da roça libertos, tendo que ir aos grandes
centros urbanos para submeterem-se ao trabalho forçado. A saída alforriada da
roça e o despertar do mundo moderno. A fusão das cores de pele e nacionalidades
ao balé de sons e corpos do asfalto. É uma música em completa urgência
ambulante. Sua voz de indefinida tristeza crepita ao final de cada palavra,
como uma erupção de dor e perda, ou o estalo do chicote que rasga a pele. A
música parece nadar suavemente pelo Mississippi, até o Golfo do México,
abrir-se para o Atlântico e arrebentar-se contra a costa Africana; e as
incontáveis gotas desse vagalhão transformam-se em lendas sobre leões e
rinocerontes, em sabedorias ancestrais contidas dentro de crânios idosos, em
savanas, rios impenetráveis e o coração das trevas, que emite, de seu
epicentro, do início das civilizações, todas as histórias do concreto e asfalto
que nunca verá. E faz isso para nos mostrar como é fina a linha da vida, como é
tênue a fibra do amor, como é longa nossa viagem em comunhão, aqui estamos,
debaixo da chuva com sol torrando, olhos entrelaçados, errantes desconhecidos e
tão similares. Aumente o som.
A voz de
Kimbrough ribombou por entre ouvidos, preenchendo o fecundo e silencioso espaço
entre palavras. Ecoou, desde o passado, um som de rizomas, com formas abertas
como fogos de artifício. É uma das vozes mais convidativas que já ouvi, ela nos
transporta. E talvez ninguém tenha aceitado o convite, gostado tanto dessa viagem
no banco de trás, ou se deixou ir tanto quanto Dan Auerbach, o vocalista e
guitarrista dos The Black Keys. Segundo ele mesmo, passava dias escutando
Kimbrough, tocando ‘junto’ com ele, só os dois; um presente fisicamente e o
outro apenas em ondas sonoras. Sabia as notas de cor, conhecia tão bem o jogo
que alongava e assimilava as músicas quando quisesse, dando ao som seu toque. A
admiração de Auerbach por Kimbrough pode ser vista no primeiro disco dos Black
Keys, The Big Come Up(2002), e também no segundo, Thickfreakness(2003),
onde eles fazem covers de Kimbrough, Do The Rump e Everywhere I Go.
São músicas geniais porque são similares apenas como sons sensoriais. Uma é o
desdobrar-se da outra, uma miragem, um eco sentimental.
Depois de três
álbuns e um EP, os Black Keys lançaram seu primeiro e único álbum composto
inteiramente de covers, Chulahoma, The Songs Of Junior Kimbrough(2006).
Ele soa como se fosse o primeiro álbum da banda, como se ali estivesse a
essência de seu som, de tudo que veio antes e depois daquilo. O álbum é tão
demolidor que a própria viúva de Kimbrough, Mildred, aparece na última faixa,
uma gravação telefônica, onde ela diz que Auerbach é “talvez o único que
consegue tocar como Kimbrough.” Uma frase no mínimo intrigante. Ela sugere que
Auerbach não é uma cópia. Ele toca como Kimbrough não porque ele toca igual,
mas porque ele toca naquela rotação, naquela vibração, daquele jeito
melancólico e chamejante. Tudo que o Auerbach tocou antes ou depois de
Chulahoma está dentro desse álbum. Sua essência e exuberância estão contidas em
faixas como Meet Me In The City e My Mind is Ramblin. São nos longos e intensos
segundos dessas canções que Auerbach deixou de ser Dan por alguns minutos e
tornou-se parte da corrente sonora que atravessa o caos e a ordem de cada
célula, segundo ou contato. Ele refrata e reverbera o blues, deixa de ser
apenas um músico e vira um pictograma sonoro. Produz lágrimas elétricas com sua
guitarra, pontuadas precisa e economicamente pela bateria de Patrick Carney.
Ao final do
álbum, nada resta senão a impermanência e o alento da lembrança de ecos,
distorções, feedbacks e pratos surrados; enquanto uma brisa sopra uma fina
camada de tristeza que parece pairar apenas sobre nossas cabeças. Sua sombra é
uma longa e persistente música. A voz de Auerbach, como a de Kimbrough, parece
revelar algo sobre aquela pessoa que canta, que nem ela própria imaginava. É
uma voz tão verdadeira e genuína que qualquer um pode se ver na pele daquela
pessoa. Ambos são homens de poucas notas, mas que dizem o necessário e
suficiente. Em Chulahoma pode-se notar os cortes bruscos, o edaz grito
abafado, as dispersas frases ditas sem grandes explicações, as digressões
pessoais e tão comuns, os rugidos e berros da guitarra, o passo firme e
constante da bateria, com um bumbo soando como pequenos big bangs que os Black
Keys floriram seus álbuns, desde The Big Come Up até El Camino(2011).
Como se fosse possível costurar uma linha por entre músicas de todos os álbuns
com cada música de Chulahoma.
Chulahoma
não é o melhor álbum dos Black Keys, longe disso, mas é um disco que revela,
para qualquer um que o escute, a alma inquieta e triste de Auerbach. É um ótimo
álbum para entende-lo, sua forma de tocar a guitarra, de compor e de cantar
como se aquela fosse sua última apresentação. Bom também para sacar a bateria
de Carney, em constante e prolixo diálogo com Auerbach, contida e tão
expansiva, e com a mesma delicadeza de um gorila em uma loja de antiguidades.
Ao mesmo tempo em que o álbum contém, de certa forma, o som total dos Black
Keys, ele também é totalmente anacrônico com o resto da discografia deles. Isso
porque ele apenas ressoa os outros álbuns, como que sugerindo um quê de
duplicação perigosamente boa; ele pisca com apenas um olho para os outros
álbuns. É como Mildred disse, o álbum soa como tudo que os Black Keys
fizeram antes e depois; como uma semente. Dentro dessa semente, durante aquelas
seis faixas do álbum, Dan Auerbach e Patrick Carney não existem mais, existe
The Black Keys, a dupla de magos errantes que captou uma estranha e antiga
freqüência. Como um disco que uma menina levada e curiosa descobre dentro de um
batido baú, perdido no sótão de seu avô. Soaria envelhecido em 1942, em 1978,
bem como em 2006. E esse envelhecimento implacável de cada faixa, que habita
uma antiga paisagem, uma memória nossa, é o melhor elemento dos Black
Keys.
Esse é o
mistério dos Black Keys, e de Kimbrough, essa novidade envelhecida. Eu sempre
escuto algo novo quando escuto as mesmas músicas. Elas são sempre novas, porque
soam como se tivessem sido feitas em um outro plano, onde não existem medidas
ou estruturas. São sons muito diferentes de sons de época, são experiências,
são convites, são histórias contadas por pessoas não identificadas, mas por não
haver identificação, estão sempre abertas. Qualquer um pode ir ali e pegá-las,
ou apenas escuta-las. Auerbach canta como se suas feridas ainda não abertas já
estivessem sendo cicatrizadas com cola de bastão. Carney toca e nossos corações
batem junto com seu bumbo, nossas agonias gritam com sua caixa, e nossas
paixões arrebatadoras sentem o eco de seus surdos. O tom da voz, a presença do
cantor, a levada descompassada, mas sensual da bateria nos revelam uma banda em
completa sintonia e capaz de fazer um som absurdamente bom. As batidas dadas
entre os impulsos nervosos da guitarra descompactam nossas visões racionais e
lineares, nos conduzindo por diferentes caminhos entre ruas separadas por
décadas.
Escutar Black
Keys é como estar em um baile de formatura, onde o tom das pessoas ali presente
é o da vitória e conquista, do clímax antes do gozo. Somos jovens por mais uma
música, mas jovens já velhos, jovens que sobreviveram à escola, capazes de
qualquer coisa. Notas agrupadas nas ora suaves, ora brutas melodias. Harmonias
dissimulantes que acobertam grandes perdas. Cada música traça uma paisagem
caleidoscópica, sempre diferente, jamais se repetindo, guardando dentro de si
todo o mistério que há. É um som tão denso e pesado que parece que eles
conseguiram condensar a potência sonora de todo um estádio amplificado dentro
de um minúsculo quarto. As notas são dispostas sobre um louco tabuleiro,
indicando uma constante movimentação em padrões já familiares, mas que
estranhamente nos surpreendem, como um turbilhão de novidades.
Eis os Black
Keys, sete álbuns desde sua estréia em 2002, com Grammy no bolso, deixando seus
fãs fazerem os pôsteres de seus shows pelos EUA, com clipes toscos e
inteligentes, e vídeos virais. Vá a um show dos Black Keys e verá um grande
número de pessoas tendo orgasmos sensoriais. Escute Everlasting Light e,
quem sabe, você entendera. É uma música perigosa por ser assexual, além de ser
totalmente erótica, “oh darling, can’t you see, it shining just for you.” Que
tal misturar um filme western com um suspense de Agatha Christie? Escute Psychotic
Girl e saberá que é possível. Quem sabe botar o punk pra soar meio funk? Escute The Breaks. Que
tal condensar o delta blues em um minúsculo amplificador, e soltá-lo em meio à selvageria
do concreto urbano? Escute Keep Me. É muito fácil falar que Black Keys
soa como muitas bandas antigas, porque, de fato, eles soam, mas explicar o
porquê disso, isso ninguém consegue. Mostrar onde é parecido ninguém mostra sem
ter que mentir um pouco. É um mistério: som de vitrola digital. Como All
Night Long, os Black Keys estão parados no tempo, esperando mais alguém
apertar play, ou ir a um show. E quando eles terminarem, e ambos morrerem, sua
música ainda será virgem, será ainda nova para muitos jovens. Porque a música
dos Black Keys não está fixa em lugar algum, ela soa estranhamente familiar; um
eco que em nós perdura, sem nós nos darmos conta, e transforma novas melodias
em antigas canções.
A cada novo
álbum eles apresentam uma nova textura, timbres diferentes, levadas inusitadas.
Aproveitam as potencialidades da banda como poucos artistas. A qualidade das
gravações vai ficando cada vez melhor, mas o cru sempre se sobressai. É som com
força bruta suficiente para dar vida a um ser morto. Ao final de seu primeiro
álbum eles nos deixam a pergunta, “como que o mundo soaria se ele conseguisse
falar conosco?” Isso depois de ter nos arrasado com músicas cortantes e
explosivas. O segundo disco, Thickfreakness(2003), soa como se tivesse
sido gravado em cima da caçamba de uma pick-up em alta velocidade, perdida em
alguma rodovia que cruza os EUA, Set You Free é ótimo exemplo dessa
sensação; feche os olhos ao escuta-la e verá. A capa do terceiro disco Rubber
Factory(2004) indica quais caminhos o som vai trilhar, com Carney e
Auerbach com pinta de exploradores do século vinte e um, diante de uma paisagem
meio urbana, meio tribal. Um passeio inexplicável pelo mundo da música, porque
em 2004 o próprio mundo era caoticamente inexplicável, com George W. Bush
segurando as rédeas de uma carruagem desgovernada, e o resto de nós sem saber
se o fim realmente crepitava na próxima esquina, com bombas amarradas por todo
seu corpo, ou em forma de jatos supersônicos carregando em seus corpos
metálicos, feito bebês, mísseis e metralhadoras. Já o quarto álbum, Magic
Potion(2006), é, também como a capa, contido e quase rarefeito. Como se o
talismã da capa fosse aberto durante o disco e sobre nós fosse derramado uma
devastadora poção. Attack & Release(2008), é talvez o mais íntimo de
todos. Nos revelando músicos com identidades dilaceradas, com restos
esparramados sobre trilhas sonoras de filmes de Hollywood, apresentações nos
mais variados shows e talk-shows, dos mais distantes lugares e desconhecidas
emissoras, de Akron Ohio, para os confins de qualquer lugar que o som chegue. Brothers(2010),
meu predileto, é parecido com a historia de Jasão e os argonautas. Somente os
mais distintos heróis de seu tempo navegaram ao lado de Jasão, em sua nau Argo,
em busca do velo de ouro. Como as historias contidas nas entranhas da Argo, em
cada uma de suas tábuas e fibras das velas, em cada um daqueles magníficos
heróis, como Hércules, que recontavam todos os mitos que haviam precedido
aquela missão, talvez até aumentando suas glórias e conquistas, Brothers
contém um breve apanhado da música da segunda metade do século vinte em diante.
Um bizarro emaranhado de sons e batidas que fragmentam um enorme panorama de
nossos heróis, de Howling Wolf até David Bowie, Muddy Waters até Alex Turner.
Seu último lançamento é El Camino(2011), um disco composto, quase que
totalmente, por hits pegajosos e dançantes. Como as músicas de Brothers
eram lentas demais para serem tocadas ao vivo, o que lhes gerou um trabalho
extra para adapta-las para os palcos, eles optaram por acelerar o tempo nesse
último trabalho. Não que isso fosse um problema, Everlasting Light, por
exemplo, teve sua velocidade diminuída ao vivo e tornou-se ainda mais sinuosa.
Independentemente, o resultado é um disco de música ligeira e com uma pegada
meio caminhoneira, meio industrial, a primeira característica é resultado da
parceria Auerbach-Carney, e a última é a conseqüência de ter a produção
assinada pelo professor pardal da música atual, Danger Mouse.
El Camino
é um ótimo álbum para essa década que se abre diante de nós, como uma primavera
ensandecida, repleta de promessas e, mesmo assim, completamente carregada de
memórias que preferimos esquecer. Obama não foi capaz de modificar tudo que
prometeu, “a change is not a comin’,” e os fanáticos de Wall Street continuam à
solta pelas ruas de Manhattan. A Palestina continua vagando em meio à clandestinidade
e longe dos inúteis palpites e recomendações da ONU. Muçulmanos e Cristãos
continuam, ainda, seu conflito cada vez mais difícil de se justificar sem ter
que falar sobre a montoeira de dinheiro sujo de sangue que se esconde por
detrás de tudo aquilo. Os trabalhadores e trabalhadoras da China continuam fabricando
nossos confortáveis, porém desnecessários gadgets. Nossos políticos permanecem
nadando em enormes piscinas cheias de champanha, protegidos por uma muralha
burocrática, desenvolvida com nosso rico dinheirinho. Os radicalismos crescem,
a ignorância também, permanecemos desinformados, contudo crentes de que tudo
está sob controle. “What I see
is killing me, you won’t make it alone,” diz Auerbach em Hell of a Season.
Uma música despretensiosa e poderosa, cujo começo parece uma regravação
de She’s Long Gone, de Brothers, mas que se desenvolve em uma
trágica história que só consegue consolo com o encontro. A levada parece nos
conduzir por uma viagem por aquilo que foi a década que se passou. Auerbach nos
transporta com sua voz sofrida e angustiada, sua guitarra emite pulsos
constantes, feito sinais de um distante farol, enquanto a bateria de Carney
explode como bombas ou minas explosivas, do lado de fora de nosso veículo
sonoro. Toda estupidez degradante, cada gesto preconceituosamente sem sentido e
ineficaz, assim como cada palavra inútil que largamos pelo espaço ao acaso
passam por nós tão rápido quanto o pique da música. Não sei se foi a intenção
deles, mas foi uma sacada genial fazer a música seguinte se chamar Stop Stop,
bem como fazer seu ritmo ser totalmente quebrado.
Atenção
redobrada em Little Black Submarines, a faixa épica do álbum. Se o álbum
fosse uma família reunida, onde cada faixa é um membro da família, Little
Black Submarines é aquele irmão aberrante que mais parece um elefante fora
de controle. “Será que falamos algo sobre o elefante?” pergunta o pai da
família, Lonely Boy, para a mãe, Money Maker, não há resposta,
obviamente. Ao mesmo tempo em que Little Black Submarines é destoante do resto
do álbum, ela também resume todo o disco, bem como a existência dos Black Keys
até então. A música é uma espécie de conversa entre Auerbach e uma operadora de
telefone, onde ele faz suas lamentações para ela. Em pouco tempo, percebemos
que suas lamentações foram, na verdade, nossas lamentações nessa década que se
passou. Nossos corações quebradiços estão agora totalmente cegos, como diz a
letra. As vozes que nos chamavam se perderam no tempo, sem que nós tivéssemos
tempo para vê-las reluzir. Não foi uma década particularmente profícua ou boa
para os Norte Americanos, sequer para o resto do mundo, e Auerbach parece nos
transmitir isso como ninguém. A música começa com Auerbach e seu violão, no bom
e velho estilo folk. Auerbach vai destrinchando tudo aquilo que acabou por nos
decapitar nessa última década, revivendo cada dor e perda entre suas sílabas.
Carney entra, ao fundo, feito explosões vistas do céu, de dentro de um avião;
distantes, porém não menos letais. Eis que Auerbach entra com sua guitarra,
soando como um trovão. Criando um enorme redemoinho que consome tudo aquilo que
chegar perto dele. “Treasure
maps/ falling trees(…) Stolen friends and disease, operator please/ pass
me back to my mind,” sentencia Auerbach, como que jogando mais combustível no
redemoinho, embora inconscientemente, em um ato já mecânico e sem sentido
algum; como a maioria de nós vive. “The voices calling me/ they get lost and
out of time,” diz Auerbach instantes antes de aniquilar tudo aquilo que passou
bem diante de nós: mísseis, bombas, jatos e cargueiros, porta-aviões recheados
de armas de destruição em massa, metralhadoras, infâmia e miséria, fome e inescrupulosa
ganância, imbecilidade reinante e covardia indiferente, promessas sujas e
impossíveis ao lado de falsos começos e tristes lembranças que optamos por
enterrar em nossos inconscientes.
Até a
wikipedia pode lhe dizer quem são os Black Keys, o que quase ninguém vai te
dizer é que eles, bem como Kimbrough, durante os breves, porém incessantes e
persistentes segundos que compõe suas músicas, deixaram de ser pessoas,
artistas, para tornarem-se ecos, reverberações, distorções e amplificações de
sons. Não há como encaixa-los em esquemas ou definições. É preciso, acima e
antes de tudo, experimenta-los, aceitar seus convites, embarcar na viagem no
banco de trás do carro. É um som que evoca lembranças, momentos
semi-esquecidos, mas que ainda permeiam nossos pensamentos. A novidade
envelhecida do som de vitrola digital. Álvaro de Campos nos disse certa vez,
“muito a leste não fosse o oeste já! Pra que fui visitar a Índia que há/ Se não
há Índia senão a alma em mim?” Se não há Índia senão a alma em mim é exatamente
a grande característica de Kimbrough e dos Black Keys: eles não tocam nada, nem
blues ou rock, o som é que soa através deles. Quando escutamos aquela música
não há meios para classifica-la em irrisórios “isso é tal, aquilo é tal,” o
fundamento nos foge e as tabelas se tornam por demais elusivas. Estão sempre um
passo a frente de nossos julgamentos. Estão a cada novo álbum nos trazendo algo
familiar, embora borrado e impreciso, como um passeio demorado em um elevador
que fizemos quando crianças, uma viagem de carro em família, um fim de tarde
com o animal de estimação, qualquer coisa. É uma música tão arrebatadora quão
verdadeira, diferente do mundo que a rodeia. Ela é um dos poucos pedaços de
real que vagam entre nós nesse atual momento. Escutar essas músicas é ver um
retrato de si mesmo(a) flutuando em um distante horizonte, pairando sobre os
desertos de seu próprio tempo, onde revemos cada uma das pessoas que já conhecemos,
acenamos e seguimos em frente, para o agora. Seu tempo é ontem, mas seu tom é
hoje até o último gole de segundo. Feito uma vitrola com conexão USB, ou um
aparelho ultramoderno de som disparando para todos os lados uma valsa de outras
gerações. Os Black Keys não são uma banda de rock, são a alma do rock. Quando
nós achamos que conseguimos entender seu som, eles mudam toda a estrutura,
alteram o tempo, diminuem, aumentam, refratam, distorcem, o que for, o que der,
ou até o que não der, afinal, muito a leste já é o oeste.
7 comentários:
os caras sao fodas
Uma aula esse texto. Meus parabéns a quem o escreveu.
Belo texto, deixa claro a paixão e deixa a curiosidade solta para todos aqueles que não conhecem tudo ainda do Black Keys
Sensacional, parabéns pelo brilhante texto
Esplêndido o texto,mostrou a história de que poucos conheciam do Black Keys, meus sinceros parabéns pelo texto.
Demais! Simplesmente incrível a forma como você traduz uma viagem sonora em poucas palavras.
Me identifiquei totalmente com seu conteúdo... Tenho um blog sobre folk, indie, cultura pop, músicas que de verdade me toca.
http://thefolkbrasil.blogspot.com
Bacana a viagem, me identifiquei! Muito bacana mesmo!
Postar um comentário